“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”, Nelson Rodrigues.
Minha fixação pela figura do canalha deu-se em 1964. Eu contava com apenas seis anos. Lembro-me que conheci a palavra logo após uma briga na saída da escola. Depois de aplicar um soco nas ventas de um coleguinha, ele saiu chorando, o nariz latejando. Quando me dirigia para casa, uma senhora matrona – mãe do menino– pegou meu pescoço, sacudiu e gritou:
– Castelo Branco, Castelo Branco! Só podia ser parente daquele presidente canalha!!
A palavrinha ficou registrada em minha mente por anos.
Tinha vergonha de perguntar aos meus pais porque a mulher havia dito que existia um presidente canalha com o mesmo sobrenome de nossa família.
Seria eu, por conseguinte, um canalha-mirim? E minha avozinha, tão meiga, uma macróbia canalha?
Outro problema: sonora como era, a palavra poderia ser pornográfica, como punheta, xereca, siririca, xibiu. E proferir isso na frente de uma família nordestinamente patriarcal, seria algo muito canalha de minha parte.
Fiquei encafifado. Até que um dia um rapaz do bairro, sujeito quase “nerd” de tão educado, papou duas vizinhas minhas – quase ao mesmo tempo – deixando uma grávida e a outra tentando o suicídio. Mesmo assim, convenceu as duas de que não podia viver sem a presença delas.
E durante tempos, além de se dividir entre uma cama e outra, ainda foi sustentado por ambas.
Só aí entendi o que era um canalha. A partir de então, passei a estudar o fenômeno de forma sistemática.
O artigo a seguir é o resumo de uma pesquisa de mais de 30 anos. Ela comprova a célebre frase de Nelson Rodrigues de que “nenhum canalha é ridículo.”
O que é um canalha
Como sempre, as definições dicionarizadas (do italiano, canaglia; sujeito vil e infame e do latim “canalia” – coletivo de “canis”, cão) não exprimem muito bem a subjetividade dos termos mais importantes.
Sem querer bancar o canalhocrata, mas os biltres merecem muito mais da nossa linguística nacional. Afinal de contas, não sejamos hipócritas: o Brasil é o maior celeiro de tratantes do Hemisfério Sul.
Se a economia e a política prosseguirem nos moldes de hoje, brevemente nosso maior produto de exportação não será mais o café, a soja, os sapatos de Franca: serão contêineres e contêineres repletos de pulhas.
Países que desejarem incremento na baixaria de seus Congressos importarão canalhas-políticos “made in Brazil”; nações desejosas de achincalhar a sua imagem importarão canalhas-publicitários (mas há correntes que defendem os canalhas-advogados como mais ISO 9000 que os canalhas-marqueteiros).
Voltando às definições. O bom canalha é aquele que comete atos impensados de caso pensado. Promete uma coisa a uma mulher, faz outra e a convence de que fez o contrário.
Para ele, a moral e os bons costumes são apenas uma nota de pé de página no livro da vida.
O verdadeiro canalha não tem ideologia, tem primazia. Não rouba, socializa. Não se mete, mete.
E, claro, canalha que é canalha faz tudo isso com grande cordialidade, simpatia, suavidade. E de roupa.
Das diferenças entre canalhas e cafajestes
Qual é a diferença entre um homem e uma mulher? Simples: a diferença entra!
Já entre canalhas e cafajestes, a diferença não é tão explícita, grossa e cheia de veias. Por causa da diversidade.
Estudiosos da canalhice e da cafajestagem como fenômeno social afirmam que, no Brasil, existem 60 diferente cafajestes para cada Padre Marcelo.
Muita gente prefere dizer que o exemplo típico de cafajeste foi Jece Valadão. O cara malvado, com panca de bandido, que faz furor com a mulherada. Ele é, sem dúvida, um arquétipo nacional respeitável. Mas há controvérsias. Existem também muitos fãs de Waldick Soriano, o canalha de raiz, quase um naif.
Há até quem ponha suas fichas num canalha menos preso às tradições e liturgias da função, como seria o caso do Sidney Magal.
No campo ficcional, dois bons exemplos de canalha e cafajeste são o “Amigo da Onça” e Darth Vader. O primeiro, o ícone da calhordice retrô. O segundo, mascarado, sacana e péssimo pai, o cáfa do futuro.
Felizmente há um método eficiente para saber quando se está diante de um canalha ou de um cafajeste.
Convide um pulha para ir à casa de outro pulha.
Lá chegando, coloque um ao lado do outro e jogue uma moeda para o alto.
O pulha que pegar a moeda é o cafajeste.
O pulha que pegar o número do telefone da mulher do cafajeste é o canalha.
+ Veja a Tipologia de Canalha
+ Confira a segunda parte do texto: A Origem do Canalha
► Texto por Carlos Castelo. Escreve, desde sempre, para qualquer meio conhecido: jornais, revistas, sites, cinema, TV, propaganda etc. É um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. Também é autor de nove livros que vão de crônicas a aforismos, passando por um romance policial e um infanto juvenil.
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