Nunca chorei tanto quanto por causa de um molho de tomate.
Sentados na mesa da cozinha, eu e meu tio nos servimos de macarrão e molho. O que, normalmente, era refeição que recebia a família inteira, naquela tarde contava apenas com a nossa a triste presença.
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Se fosse um almoço comum, estaríamos envolvidos em algum debate futebolístico ou sobre alguma outra trivialidade inerente aos jovens de classe média-baixa.
“O Senna era muito mais piloto do que o Schumacher’, “Os Paralamas do Sucesso são muito mais legais do que a Legião Urbana”, ou algum outro tipo de discussão que poderia ser levada por horas a fio, intermediada por olhares zangados do meu avô, os comentários ásperos de minha mãe ou o riso doce de minha avó. Mas este não era um dia comum, porque ela não estava lá. E nunca mais iria estar.
Desde pequeno, a macarronada era tradição familiar. Uma vez ao mês, dona Odete ia para feira, comprava tomates, carne moída e passava a manhã cozinhando sua receita de molho. Para não ter trabalho, congelava uma dezena de potes. Após a sua morte, os almoços seguiram. Com menos entusiasmo e a alegria de outros tempos.
Por algum acaso do destino, naquela tarde, estávamos apenas nos dois. No freezer da geladeira, um único pote. Descongelamos, cozinhamos o macarrão e servimos a mesa. De frente um para outro, meu tio teve um triste lampejo. “Essa é a última vez que vamos comer o molho dela”. E chorei, como nunca havia chorado antes.
São os detalhes que rasgam a carne. Que transbordam a alma. Uma brisa bate na janela trazendo um leve cheiro de rosas e logo você lembra que faz quatro anos que ela o deixou. Nenhum vazio é tão grande quanto a cadeira desocupada em um jantar de família após a perda de um ente querido.
Estão nas texturas, nos cheiros e nos cantos da casa, as maiores complexidades da vida.
Lembro que meu primeiro beijo teve gosto de Bubbaloo de uva e cigarro. Ela era três anos mais velha, fumava e estava na fase de se rebelar contra o mundo. Eu não sabia de nada sobre a vida e fui pego de surpresa em abraço numa tarde frio no começo do inverno.
Não lembro quanto tempo o beijo durou. Não recordo do que falamos antes ou depois do ato. Por Deus, eu nem lembro da voz dela mais. Jamais esqueci do doce gosto de chiclete mistura com o amargo Marlboro Vermelho.
Amar não está na figura complexa do outro, mas sim em suas pequenas reentrâncias. A risada doce de um filho. O cheiro que ela deixa em sua roupa. O abraço desengonçado, mas doce, de um pai. Existir está em apreciar a sutileza de cada verso, não a aparência do poema todo.
Minha vó faleceu em uma manhã de segunda-feira. Não lembro de nada do funeral. Não lembro de nada que se passou nos dias entre sua morte e o último dia do molho de tomate. Porém, lembro da tristeza infinita ao terminamos a refeição. Nunca mais em minha vida, existiria aquele detalhe.
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