A resposta indignada de um ex-escravo a carta de sua senhora

Confira uma resposta escrita por um ex-escravo para seu antigo “dono”

Confira uma resposta escrita por um ex-escravo para seu antigo “dono”

“Ninguém nasce odiando uma pessoa por sua cor de pele ou religião. Pessoas são ensinadas a odiar. E se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar.” (Nelson Mandela)

A história é contada pelos vencedores. Embora no meio do caminho muitos vencidos tenham doado sua vida e entregue seu sangue por uma causa comum, poucos são os lembrados, décadas ou séculos depois.

Entre os notórios: Kate Sheppard, em sua luta a favor dos direitos femininos na Nova Zelândia; Martin Luther King Jr, por sua guerra pacífica pelos direitos dos negros nos EUA; Harvey Milk, o primeiro gay assumido a vencer uma eleição nos EUA (e que acabou morrendo pela causa).

Mas, existe uma camada de pessoas que, apesar do mesmo ou até maior empenho destes célebres mártires, que morreram defendendo a causa com poucas menções honrosas.

A história delas, porém, merece ser lembrada para que o mesmo erro não se repita com outras causas.

Um desses notórios desconhecidos é Jarm Logue, reverendo e abolicionista, autor de uma autobiografia. Em uma carta encontrada com o tempo, revela não só o lado obscuro da escravidão, mas como as pessoas da época podem, simplesmente, reproduzir um padrão preconceituoso sem desconfiar do erro que cometem.

O ano é de 1834. Com 21 anos, Jarm rouba um cavalo de seu dono e foge para escapar da escravidão em que nascera. Para trás, deixou sua história, seus irmãos e mãe. Estabelecido em Nova York, 26 anos depois, após ganhar fama lutando pela causa e ter fundado várias escolas para crianças negras, recebe uma carta da esposa de seu antigo dono, exigindo US$ 1000, ou venderia para outra pessoa.

Confira não só o conteúdo da carta, mas a resposta indignada do ex-escravo. Isso pode render muitas reflexões sobre os casos de intolerância que andam acontecendo ultimamente, contra negros, contra homossexuais e contra mulheres…

A resposta indignada de um ex-escravo a carta de sua senhora 6

Maury Co., Estado do Tennessee,

20 de fevereiro de 1860.

Para Jarm:

​​- Tomo  minha caneta para escrever-lhe algumas linhas, para que você saiba o quanto estamos bem. Eu estou aleijada, mas eu ainda consigo me movimentar. O resto da família está bem. Cherry está tão bem como de costume. Escrevo-lhe estas linhas para que você saiba a situação em que estamos, em parte em consequência de sua fuga e roubo da Old Rock, nossa bela égua.

Embora tenhamos conseguido a égua de volta, ela nunca mais teve o mesmo valor depois de você levá-la; e como agora necessito de alguns fundos, eu decidi vender você; e eu recebi uma oferta por você, mas não considerei adequado aceitá-la. Se você me enviar mil dólares e pagar pela velha égua, eu vou desistir de todas as queixas que tenho contra você.

Escreva-me logo que você ler essas linhas, e diga se vai aceitar minha proposta. Em consequência de sua fuga, tivemos que vender Abe e Ann e doze hectares de terra; e eu quero que você me envie o dinheiro para que eu possa resgatar a terra vendida, e no recebimento da quantia de dinheiro acima nomeada, vou enviar-lhe o seu recibo de venda.

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Se você não cumprir com o meu pedido, eu vou vendê-lo para outra pessoa, e você pode estar certo de que não vai demorar muito tempo para as coisas mudarem para você. Escreva-me, logo que você receber essas linhas. Dirija sua carta a Bigbyville, Maury County, Tennessee. É melhor atender ao meu pedido.

Eu soube que você é um pregador. Como o povo do sul é tão ruim, é melhor vir e pregar para seus velhos conhecidos. Eu gostaria de saber se você lê a Bíblia. Se sim, você pode dizer o que será do ladrão se ele não se arrepender? E, se a um cego guiar outro cego, qual será a consequência? Penso que seja desnecessário dizer muito mais que isso por ora.

Uma só palavra é suficiente para o sábio. Você sabe onde o mentiroso tem sua parte. Você sabe que nós criamos você como criamos nossos próprios filhos; que nunca foi abusado, e que, pouco antes de fugir, quando o mestre perguntou se você gostaria de ser vendido, você disse que não iria deixá-lo por ninguém.

Sarah Logue.

———————-

Syracuse, NY, 28 de março de 1860.

MRS. SARAH LOGUE:

– Sua carta de 20 de Fevereiro foi devidamente recebida, e agradeço-lhe por ela. Um longo tempo passou desde que eu ouvi de minha pobre e velha mãe, e fico feliz em saber que ela ainda está viva, e, como você diz, “tão bem como de costume”. O que isso significa, eu não sei. Gostaria que você tivesse dito mais sobre ela.

Você é uma mulher, mas, se tivesse o coração de uma mulher, você nunca teria me insultado dizendo que vendeu meus únicos remanescentes irmão e irmã, porque eu não me submeti ao seu poder de converter-me em dinheiro.

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Você diz que vendeu meu irmão e irmã, ABE e ANN, e 12 hectares de terra, porque eu fugi. Você tem a inefável maldade de me pedir para voltar a ser sua miserável propriedade, ou em lugar enviar-lhe 1.000 dólares para que você possa resgatar a terra, mas não para resgatar meus pobres irmão e irmã! Se fosse para lhe enviar o dinheiro seria para reaver meu irmão e minha irmã, e não para você conseguir terra.

Você diz que está aleijada, e sem dúvida você diz isso para que eu sinta pena, pois você sabe que eu sempre fui suscetível nessa direção. Eu sinto muito por você, do fundo do meu coração. Todavia, estou indignado além do que as palavras podem expressar, que você possa ser tão cruel a ponto de rasgar em pedaços os corações que eu tanto amo; que você esteja disposta a nos empalar e crucificar sem qualquer compaixão, por seu pobre pé ou perna. Mulher miserável!

Saiba que eu valorizo ​​minha liberdade, para não falar de minha mãe, irmãos e irmãs, mais do que todo o seu corpo; mais, na verdade, do que a minha própria vida; mais do que todas as vidas de todos os donos de escravos e tiranos que existem sob o Céu.

Você diz que recebeu ofertas para me comprarem, e que você me venderá se eu não lhe enviar US$ 1000, e no mesmo fôlego e quase na mesma frase, diz: “você sabe que nós criamos você como criamos nossos próprios filhos”.

Mulher, você criou seus próprios filhos para o mercado? Você os criou para o pelourinho? Você os criou para serem conduzidos acorrentados em fileiras como animais? Onde estão os meus pobres irmãos e irmãs sangrando? Você pode dizer? Quem foi que os enviou a campos de açúcar e algodão, para serem chutados, algemados, chicoteados, gemerem e morrerem; onde nenhum parente pudesse ouvir seus gemidos, ou sentir compaixão perante seu leito de morte, ou acompanhar seu funeral?

A resposta indignada de um ex-escravo a carta de sua senhora

Mulher miserável! Você diz que você não fez isso? Então eu respondo, seu marido fez, e você aprovou, e a carta que você me enviou mostra que seu coração aprovou tudo. Você devia se envergonhar.

Mas, por falar nisso, onde está o seu marido? Você não fala dele. Deduzo, portanto, que ele está morto; que ele foi pagar sua grande conta, com todos os seus pecados contra a minha pobre família sobre sua cabeça. Pobre homem! Foi encontrar os espíritos do meu pobre povo, humilhado e assassinado, em um mundo onde a Liberdade e a Justiça são MESTRES.

Mas você diz que eu sou um ladrão, porque eu levei a velha égua comigo. Você não entende que eu tinha mais direito sobre a velha égua, como você a chama, que MANNASSETH LOGUE teve sobre mim? É um pecado maior eu roubar o seu cavalo, que ele me roubar do berço da minha mãe? Se vocês acreditam que eu perdi todos os meus direitos pelo que fiz, não é certo deduzir que vocês perderam todos os seus direitos sobre mim pelo que fizeram?

Você precisa aprender que os direitos humanos são mútuos e recíprocos, e que se você tomar a minha liberdade e vida, você perde o seu próprio direito à liberdade e à vida. Diante de Deus e do Paraíso, existe alguma lei para um homem que não serve para todos os outros homens?

Se você ou qualquer outro especulador sobre o meu corpo e os direitos quiser saber o quanto valorizo os meus direitos, terão que vir até aqui e impor as mãos sobre mim para me escravizar. Você acha que me aterroriza apresentando a alternativa de dar o meu dinheiro a você ou entregar o meu corpo para a escravidão? Então saiba que recebi sua oferta com desprezo indizível.

A proposta é uma afronta e um insulto. Eu não vou ceder nem mesmo um fio de cabelo. Eu não vou respirar sequer um fôlego mais curto para me salvar de suas perseguições. Eu vivo em meio a um povo livre, que, agradeço a Deus, simpatiza com os meus direitos e os direitos da humanidade; e se os seus emissários e vendedores vierem aqui para me re-escravizar, e escaparem do vigor intrépido do meu próprio braço direito, eu confio que meus fortes e bravos amigos, nessa Cidade e Estado, serão os meus salvadores e vingadores.

Atenciosamente,

JW Loguen

Versão adaptada da original

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Leonardo Filomeno
Leonardo Filomeno

Jornalista, Sommelier de Cervejas, fã de esportes e um camarada que vive dando pitacos na vida alheia

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