“O filme não foi um acidente. Queríamos fazer algo original e que nunca tinha sido feito antes. E nós fizemos.” – Larry Clark, diretor de Kids
Quem viveu a adolescência em meados dos anos 90 e comecinho dos 2000, com certeza assistiu ao filme “Kids”. Dirigido por Larry Clark, o filme narra um dia na vida de um grupo de adolescentes em Nova York.
Na trama, Telly é um jovem que não sabe que é portador do vírus HIV. Seu principal prazer é transar sem camisinha com garotas virgens. Jennie é uma de suas vítimas que descobre ser portadora do vírus após fazer um teste.
Em meio a isso, vemos o cotidiano de jovens menores de idade que tem vida sexual ativa, usam drogas e se envolvem em casos de violência.
Se por aqui no Brasil, muitos de nós vimos o filme na escola como parte da disciplina de educação sexual ou ética, nos Estados Unidos muitos pais quiseram impedir que o longa chegasse aos seus filhos. “Kids” pegou a censura máxima que o um filme pode pegar na terra do Tio Sam.
Não é a toa, já que muitos dos seus temas continuam chocantes até hoje. Mais espantoso ainda é saber que muitos dos atores que aparecem se drogando ou transando no filme ainda eram adolescente na época das filmagens. Algo inconcebível para os tempos modernos.
Imagina o choque para os pais super protetores que imaginavam seus filhos como príncipes e princesas inocentes vendo jovens bebendo, fumando, usando drogas, falando palavrão e transando nas telas do cinema. O filme quebrava toda a ilusão e jogava na cara o que é realidade. Todo jovem está suscetível a isso.
Esqueça o tom doce e delicado de comédias adolescentes dos anos 80 como “Clube dos Cinco”, Gatinhas e gatões” e “Curtindo a vida adoidado”.
Durante os anos 90, muitos diretores abriram mão de tapar o sol com a peneira na hora de retratar os jovens e resolveram tratar o tema com mais realismo e seriedade.
Ao lado de “Diário de um adolescente”, “Kids” ajudou a inspirar uma série de outras produções com a mesma temática. Entre eles “The dreamers – Os sonhadores”, “Elefante”, “Paranoid park”, “Ken Park”, “Aos treze”, o seriado “Skins” e muitos outros.
Como Kids saiu do papel
Em 1995, Larry Clark já era reconhecido pelo seu trabalho transgressor na fotografia. Porém, mesmo com 52 anos, continuava determinado em suas obras. Se cismava que queria tirar fotos de algo, queria fazer parte daquele momento.
Para fotografar skatistas de Nova York resolveu aprender a andar de skate e começou a frequentar parques e pistas locais. Foi em um desses rolês que conheceu Harmony Korine, um jovem de 19 anos que tinha acabado de se mudar para a cidade para fazer um curso de roteiro para cinema.
Os dois se trombaram pela primeira vez no Washington Square Park. Korine resolveu trocar uma ideia com Clark por causa da câmera Leica que ele carregava de um lado para o outro da cidade.
Nesse papo, o velho disse que tinha planos de fazer um filme e o jovem, que sempre carregava seus curtas na mala, entregou um VHS com um filme que tinha feito quando ainda estava no colegial.
Impressionado após assistir a obra, Larry ligou para o jovem querendo saber se ele era capaz de escrever um roteiro sobre uma ideia que tinha. A história de um jovem rapaz cujo maior prazer era tirar a virgindade das meninas de seu bairro.
A produção começou a caminhar após um encontro dos dois com Gus Van Sant, que desde o começo se mostrou interessado em produzir a obra. O roteiro ficou pronto em uma semana. A ideia era ter uma visão bem realista e cruel sobre como é o mundo dos adolescentes visto de dentro. Conseguiram.
Segundo o próprio diretor e roteirista, o objetivo principal do projeto sempre foi incomodar o máximo possível os “adultos”, mostrando da forma mais realista e crua possível a forma como jovens lidam com drogas, sexo e violência.
O filme acabou sendo distribuído pela Miramax, que, curiosamente, era da Disney na época. Um típico caso de ironia fina. O longa acabou sendo sucesso de crítica e arrancou aplausos em sua estreia no festival de Sundance, mas o público conservador norte-americano quase surtou conforme o filme ia sendo exibido ao redor do país.
A recepção foi tão louca que os produtores da obra tiveram que criar uma empresa só para lidar com todas as acusações e processos que “Kids” recebia. Desde apologia às drogas até pornografia infantil.
Até mesmo um advogado especializado no combate de filmes eróticos com menores foi contratado para garantir que o filme não mostrasse nada gratuitamente.
Mesmo assim, “Kids” acabou pegando a maior censura possível nos Estados Unidos, a NC-17, que proíbe qualquer pessoa com menos de 17 anos de assistir ao filme. O que fez com que muitos dos atores não pudessem ir ao cinema ver o filme que estrelaram.
Porém, o filme de 5 milhões acabou rendendo 7 milhões de bilheteria – um feito para um longa independente e com uma censura tão alta – e causou um impacto cultural gigante.
Curiosidades dos Bastidores
“Meu filme pegou uma das maiores censuras nos Estados Unidos enquanto “Uma patricinha em Beverly Hills” passou de boa pelo orgão regulador. Tudo que tem naquele filme tem no meu. Tem uma garota querendo perder a virgindade, jovens fumando maconha e uma festa onde todo mundo bebe e vomita.
Tudo isso tem em “Kids”. Só que ele fizeram de um jeito bobo. Ninguém julga aquele filme como julga o meu. As pessoas dizem que “Kids” é um filme deprimente. Já eu acho deprimente fazer algo tão falso e fora da realidade como “Patricinha de Bervely Hills.”- Larry Clarke, diretor de “Kids”
Com um bando de adolescentes rebeldes em seus bastidores, durante as gravações de “Kids” aconteceu tudo quanto é tipo de problema que você pode imaginar.
Festas, bebedeiras, brigas e garotos sendo presos. Mas, apesar do que é retratado em tela, muitos dos jovens não tinha uma experiência sexual tão ampla.
Por exemplo, Leo Fitzpatrick, ator que interpreta Telly, tinha transado apenas uma vez antes de fazer o filme. Outro caso é Rosario Dawson que faz uma garota com ampla experiência sexual, mas que sequer tinha beijado na boca quando começou a gravar o “Kids”.
Do outro lado, alguns jovens são exatamente aquilo que vemos em tela. Justin Pierce , que interpreta Casper, melhor amigo de Telly, se meteu nos mais diversos tipos de confusão e bebedeira. O jovem chegou a ser preso duas vezes durante as filmagens.
Infelizmente, este estilo de vida foi constante até que, aos 25 anos, ele se enforcou dentro de um quarto de hotel. Outro membro do elenco que também faleceu foi Harold Hunter, o skatista negro que encontra com os jovens no parque, foi encontrado morto após uma overdose de cocaína.
As drogas são um tema importante no filme e também fizeram parte de sua gravação. Muitos dos momentos em que os jovens fumam maconha era a droga de verdade que estava em seus cigarro. Aliás, a droga era dos próprios garotas que faziam parte da produção.
Mesmo assim, muitos dos atores mirins impressionaram pela qualidade do seu trabalho. Durante os 90 minutos de Kids existe apenas uma cena improvisada. Durante o resto da produção, os jovens seguiram a risca o roteiro.
Nada mal, levando em consideração que muitos dos atores que estão no filme não são atores, mas sim garotos de Nova York que o direto Larry Clarke e o roteirista Harmony Korine conheceram nas ruas e chamaram para as gravações. Inclusive, muitos dos papéis do filme são inspirados na personalidade dos garotas na vida real.
Por falar em se conhecer, Chloe Sevigny, a jovem que interpreta a garota que descobre ter AIDS, e Harmony Korine, o roteirista de “Kids”, se apaixonaram e começaram a namorar durante as filmagens.
Apesar do filme retratar a forma como os jovens fazem sexo sem proteção, em 1995, a prefeitura de Nova York começou uma ampla campanha em prol do sexo seguro, distribuindo camisinhas em parques e escolas da cidade.
De uma forma ou de outra, “Kids” também ajudou neste processo de conscientização, sendo usado ao redor do mundo para mostrar para jovens a importância de usar preservativo durante o sexo.
A própria atriz Rosario Dawson afirma que, durante anos, foi abordada por pessoas que contavam como mudaram de vida após assistirem “Kids”:
“As pessoas chegavam em mim e diziam que o filme mudou a vida delas. Que por causa dele pararam de usar drogas, fazer sexo sem proteção ou andar com pessoas que não deviam.
Muitos adultos chegam em mim até hoje e dizem que mostram o filme para os filhos para que eles tenham a mesma reação de medo que tiveram quando eram mais jovens. É isso que um bom filme faz.
Te faz viver uma experiência que você não viveu. Eu acho que “Kids” é provocador e inteligente porque mostra o que jovens podem fazer quando os adultos não estão prestando atenção. E mesmo 20 aos depois, pouca coisa mudou.”
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