Huayna Potosi, um desafio no ar rarefeito

Este relato começa em 2009, quando atravessei a Bolívia pela primeira vez com um grupo de amigos rumo a Machu Picchu. Atravessando o país, para conhecer suas culturas e costumes, cheguei a La Paz onde me encantei com suas pessoas. Lá os picos nevados da Cordilheira Real observam a cidade como sentinelas. Em um passeio […]

o Huayna Potosi é uma montanha com dificuldade técnica razoável

Este relato começa em 2009, quando atravessei a Bolívia pela primeira vez com um grupo de amigos rumo a Machu Picchu. Atravessando o país, para conhecer suas culturas e costumes, cheguei a La Paz onde me encantei com suas pessoas. Lá os picos nevados da Cordilheira Real observam a cidade como sentinelas. Em um passeio turístico, pude ver de perto o Huayna Potosi e admirar sua beleza e grandiosidade. Naquele dia, tomei uma decisão que se tornaria um projeto de vida: “vou escalar aquela montanha e meu primeiro cume acima dos 6 mil metros será o Huayna Potosi”.

Na mitologia aymará, Huayna Potosi (Jovem Montanha) era o filho mais querido da união de Illampu com Illimani, criados pelo ser supremo: Wiracocha. Apesar de sua altitude, o Huayna Potosi é uma montanha com dificuldade técnica razoável, o que faz muitos turistas se aventurarem em tentativas frustradas de alcançar seu cume enquanto permanecem em La Paz. Esta prática, além de desrespeitosa, é extremamente perigosa para a saúde, como falarei mais adiante.

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Assim que minha decisão foi tomada, uma revolução se instalou na minha vida. Comecei a rever minha alimentação, meus treinos (já era praticante de ciclismo e escalada a mais de dois anos), minhas despesas e tive a idéia de criar um blog, o Ataque ao Cume, para relatar toda essa experiência. O que era apenas um projeto, virou expedição.

Durante os meses que antecederam a viagem, um planejamento exaustivo foi feito. Todos os ítens presentes na minha mochila foram catalogados e pesados, estudei os percursos, li sobre medicina de altitude e revisei equipamentos. Apesar de contactar mais de 150 empresas no Brasil em busca de apoio ou patrocínio para este projeto, não recebi nada mais do que um “boa sorte”. Pude sentir como muitos atletas se sentem em tempos de olimpíadas, por não conseguirem competir em suas modalidades “menos importantes para o país do futebol”. Mas meus sonhos eram muito maiores que isso e segui adiante.

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O avião toca o trêm de pouso no aeroporto de El Alto e o ar rarefeito já começa a trazer os primeiros  sintomas da altitude: dores de cabeça e  enjôos. Me instalo, junto com meu companheiro de viagem Rafael Barbosa, em um acampamento base às margens do lago Chiar Khota no grupo do Condoriri. Um lugar mágico de paisagens dignas de um filme. Só estar ali, sem fazer absolutamente nada, é fantástico!

Porém, a altitude no acampamento já beira a faixa dos 4.700m e alguns sintomas de saúde mais intensos já são visíveis: a lassidão, responsável pela completa falta de apetite e disposição; a hipóxia, que dificulta todas as atividades que envolvem esforço físico e faz com que suas noites de sono sejam muito instáveis; e a apnéia de altitude, que contribui com boas doses de sustos durante as madrugadas geladas, quando você para de respirar e acorda desesperado buscando ar. Isso sem falar na redução dos sentidos do paladar, olfato e na dificuldade de cicatrizar cortes sofridos na altitude.

Todos esses primeiros sintomas, aliados às privações de um acampamento base, interferem no seu psicológico. Bom humor e tolerância são condições essenciais para superar o dia a dia em alta montanha. Assim, os dias foram passando e a aclimatação atenuando os desgastes da altitude, realizamos diversas incursões aos cumes próximos e treinamos técnicas de alta montanha também. Tive condições de alcançar alguns cumes na casa dos 5.500m e me sentia cada dia mais confiante e preparado para meu desafio final.

Rock Camp Huayna Potosi

Passados 8 dias no acampamento do Condoriri, retornei a La Paz para um merecido banho (sim, fiquei sem banho nesses 8 dias e quer saber, nem foi tão ruim assim! Rsrs) e também para uma bela refeição e descanso. Nos dias seguintes, organizamos toda a logística para nossa incursão ao Huayna Potosi e contratamos um guia de montanha para eventuais necessidades e emergências, afinal,  esse cume seria feito apenas em duas pessoas e… “shit happens” não é mesmo?

Nossa incursão ao cume seria feita em apenas dois dias, pois estavamos bem aclimatados, sendo assim, no dia 25 de julho, avançamos para o pé do Huayna Potosi e iniciamos uma penosa subida de aproximadamente 3h até o acampamento alto conhecido como Rock Camp, uma casinha de pedras situada a 5.130m. Este primeiro trecho é um grande “trepa pedras” e exige cuidado para não escorregar montanha abaixo ou torcer o pé em alguma pedra solta, no meio do caminho. Um curioso homem instalado em um abrigo de pedras controla quem sobe e quem desce por aquela trilha e registra nossos passaportes em um livro.

Chegamos ao Rock Camp por volta das 16h, o por do Sol sobre as núvens era algo espetacular, mas logo nos abrigamos do frio e tratamos de preparar nossas mochilas para o ataque ao cume que seria feito já na madrugada seguinte. Naquela madrugada, muitos montanhistas sairam antes de nós, preferimos sair uma hora mais tarde porque nos sentiamos bem fisicamente e eles acabariam atrasando nossa subida. Pontualmente as 3h, indexamos nossos crampons nas botas duplas, pegamos nossos piolets, uma garrafa de chá, um pequeno lanche, equipamentos de escalada e continuamos a ascensão do Huayna Potosi madrugada gelada adentro.

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Fazia aproximadamente -25ºC naquela noite, mas o vento forte facilmente despencava a temperatura para -30 ou -35ºC. Em um trecho foi preciso escalar uma canaleta de aproximadamente 6 metros sobre uma enorme greta que se abria sobre nossos pés. Ali acabamos alcançando um grupo de brasileiros “entalados” no trecho e tivemos que fazer uma parada. Isso reduziu drasticamente a temperatura de nossos corpos e extremidades. Por volta das 4h30 meus dedos começaram a congelar pela falta de atividade, quase ao mesmo tempo que nosso guia conseguiu ancorar algumas cordas e puxar os brasileiros canaleta acima, livrando o caminho para nós. Passado o susto, botamos nossos corpos em atividade novamente e seguimos rumo ao cume.

A subida é extremamente penosa, lenta e em alguns momentos perigosa. Requer atenção em cada passo dado, um escorregão pode colocar sua vida em risco e de seus companheiros de cordada também. Aqui, retomo o ponto de vista levantado no começo deste relato sobre tentativas de turistas pouco conhecedores de escalada em tentarem subir esta montanha. O turista geralmente não está com a aclimatação adequada, desconhece os procedimentos de segurança da montanha e é  incapaz de tomar as atitudes certas em caso de uma emergência. É comum ver alguns deles retornando de tentativas frustradas de cume ou vomitando de exaustão no caminho. Há ainda um risco GRAVÍSSIMO e REAL de sofrerem um edema pulmonar ou cerebral.

A alvorada chegou às 5h40 para aquecer nossos corpos e renovar nossas esperanças. Este foi o nascer do Sol mais lindo que pude apreciar na vida, era de cores tão intensas e laranjas tão fortes como se uma bomba atômica estivesse explodindo no horizonte. Aquela paisagem nos deu o gás que precisávamos para seguir adiante no trecho mais difícil e perigoso da ascensão, acima dos 5.800m, uma subida íngreme de gelo duro e penitentes. Em alguns momentos, pedras e seracs instáveis nos ameaçavam sobre nossas cabeças e precisávamos apertar o passo.

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Chegamos com muito esforço e determinação até a crista do Huayna Potosi, onde era possivel enxergar o cume a 40 metros de distância. Estava logo adiante, seguindo uma linha quase horizontal com um aclive de uns 10 metros no final. O coração apertou, mas não era hora de se emocionar. O trecho mais perigoso de nossa ascensão estava logo adiante: uma fina e escarpada crista formada por pedras e gelo duro duvidosamente estáveis. Os pés eram colocados um após o outro com cuidado e o piolet era enterrado no gelo duro com receio que tudo viesse abaixo sob nossos pés.

Atravessamos a crista, subimos os 10 metros finais com gritos de “Estamos llegando! Fuerza!” de nosso guia e no dia 26 de julho de 2012, as 9h30 da manhã, pisamos firmemente no cume do Huayna Potosi a 6.088 metros de altura. Gritei de alegria com o que me restava de ar no pulmão e caí de joelhos fincando o piolet na neve. Neste momento a montanha se apresenta com toda sua imponência e seus olhos enxergam muito mais do que o horizonte pode te mostrar. Reinhold Messner, um dos maiores montanhistas de todos os tempos, resume bem este momento:

“Mas os dias que estes homens passam nas montanhas, são os dias em que realmente vivem. Quando as cabeças se limpam das teias de aranha, e o sangue corre com força pelas veias. Quando os cinco sentidos recobram a vitalidade, e o homem completo se torna mais sensível, e então já pode ouvir as vozes da natureza, e ver as belezas que só estavam ao alcance dos mais ousados.”

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Fisicamente exaustos e com a mente confundindo realidade com ficção (em decorrência do ar muito rarefeito), iniciamos o processo de retorno com cuidado e ainda naquela noite retornamos seguros e muito orgulhosos para La Paz.

Recebemos efusivos cumprimentos de familiares e amigos. De certa forma, levei um pouco de cada um deles la pra cima comigo, pois sem aquelas palavras de incentivo e sem as pessoas que amamos no coração, nosso caminho seria quase impossível. Às vezes a gente precisa ir “mais alto” para tomar consciência daquilo que está dentro de nós mesmos.

Bons ventos!

Texto colaborativo de Renato Onorato, autor do blog Ataque ao Cume. E você? Tem algum texto legal que gostaria de ver publicado aqui? Mande um e-mail para contato@manualdohomemmoderno.com.br.

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